Maria dos Anjos e voluntária do Radar

01 / 03 / 2024

Vestiu um bairro inteiro e continua a ajudá-lo 40 anos depois

Loja de roupa de Maria dos Anjos pode não ter o movimento de outrora, mas ganhou uma nova missão: funciona como radar comunitário no Bairro da Liberdade.

Há mais de 40 anos que quem procura uma loja de roupa no Bairro da Liberdade, na freguesia de Campolide, vai parar inevitavelmente ao número 153 B da Rua Inácio Pardelhas Sanchez. A rua já teve outros nomes e ainda há quem a trate por Rua Larga ou simplesmente Rua A. Mas, seja qual for a descrição, todos sabem que é ali que funciona o cantinho da senhora Maria.

Ao balcão, com um aviso claro atrás de si a alertar os potenciais interessados de que meias e interiores não têm desconto, Maria dos Anjos apresenta-nos o seu estabelecimento, sob o chilrear dos periquitos que se adivinham na escada que dá acesso à sua habitação, no andar de cima.

O pronto-a-vestir – é assim que a proprietária lhe chama – não tem um nome propriamente dito, mas tal nunca foi impedimento para as centenas de famílias que ali se vestiram ao longo das décadas. E nos dias de hoje, longe do movimento de outrora, a loja ganhou outra função: é um radar comunitário.

“No projeto RADAR é sempre bem-vinda mais uma porta à qual se possa bater. Gosto de me sentir útil e vou passando a palavra”, justifica Maria dos Anjos, sobre a adesão à plataforma, em 2021. Os clientes, em boa parte idosos, passam frequentemente pelo pequeno mas acolhedor estabelecimento, nem que seja para dois dedos de conversa.

“Às vezes nem vêm para comprar nada. Até vêm porque o telemóvel está bloqueado e pedem ajuda. Ou passaram-lhes a receita para o telemóvel e eu explico. Há muitos idosos, o bairro envelheceu. Tenho um orgulho muito grande destas quatro décadas, muitas pessoas vieram aqui desabafar e o que é dito aqui, daqui não sai. Nem para a minha casa. A pessoa vem, desabafa, está num dia menos bom, mas vai embora mais leve. É nisso que o comércio tradicional é importante e faz a diferença”, refere a proprietária do pronto-a-vestir.

O balanço como radar comunitário, na identificação de casos de idosos em situações de isolamento ou a simplesmente a precisar de qualquer tipo de ajuda, é positivo, segundo Carolina Coelho, mediadora de proximidade: “Tem-se portado bem, tomara que todos fossem assim”.

Maria dos Anjos a olhar pela janela

“Estou na casa de muita gente”

Atuando como uma autêntica confidente da vizinhança e agora, também, como ponto de ajuda através da plataforma RADAR, Maria dos Anjos diz ter “muitas histórias e memórias”. Pelo facto de oferecer na sua loja “um bocadinho de tudo”, desde “modelos clássicos, senhora, homem e também pequenos trabalhos de costura”, este pronto-a-vestir foi a solução de muitas famílias para todo o tipo de ocasiões.

“Tenho o privilégio de poder dizer que estou na casa de muita gente. Sei que se fosse a centenas de casas do bairro ver os álbuns de família, veria as peças que vendi para as primeiras prendas de maternidade, para o batizado da criança, para o casamento e até para a mortalha. Desde o início até ao fim da vida das pessoas. Havia uma festa e a pessoa vinha vestir-se aqui… As prendas dos avós para os netos… Era uma casa de muito movimento quando a rua era maior. Mas ainda cá estamos. E há peças antigas que me aparecem aqui para arranjar e que eu reconheço”, sublinha, com orgulho.

Fala numa rua mais pequena, ainda que o comprimento seja o mesmo de sempre. A vista para o centro da cidade de Lisboa também não tem nada de pequenez, mas não existe “pelo melhor motivo”. É que o que falta, diz Maria dos Anjos, são as pessoas e as respetivas casas que, do outro lado da estrada, faziam sombra ao pronto-a-vestir.

“É pena. Tudo começou no fatídico dia em que um autocarro foi engolido num buraco que se abriu perto da estação de Campolide, há uns 15 anos. As pessoas [da encosta] foram sendo retiradas porque, supostamente, estavam em perigo, mas havia dezenas de casas que estavam boas. Foi tudo demolido e levaram mil e tal famílias”, lamenta, nostálgica.

Em todo o caso, o Bairro da Liberdade sobrevive e a rua até ganhou o nome de um médico que ali nasceu. Por Maria dos Anjos está tudo bem, desde que não haja confusões, até por causa de uma velha rivalidade com o bairro do lado de cima do Aqueduto: “A maioria dos taxistas conhece isto por Bairro da Serafina, mas faço sempre questão de dizer-lhes que aqui é o Bairro da Liberdade. E se tivesse de escolher um sítio para acabar os meus dias, era este”.